Pedaços do Outro

Pedaços de nós.

sábado, 1 de maio de 2010

Ulisses e o canto das sereias


Ensinar é sempre uma tentativa de aliciar, de seduzir. Ensinar psicanálise é quase um estupro. Falo isso pela aluna que sou, pelos abusos psicanalíticos que sofri e pelo processo de identificação com o agressor pelo qual passei, ou melhor, pelo qual passo pelo terceiro ano seguido. No primeiro ano passei com dores de cabeça literais (palavra que, praticamente, inexiste nas teorias psicológicas). No segundo ano, como monitora, acompanhei as dores de cabeça do outros alunos e fui testemunha, ou melhor, cúmplice, das constantes tentativas de aliciamento e sedução. Ensinar psicanálise é um tanto, assim, peculiar: se não as aulas tendem a se tornar um grupo terapêutico, um verdadeiro compartilhamento de dores psíquicas comunitárias.

Acredito que pela voz do professor sai um fluxo constante de significantes enigmáticos que se traduz aos alunos com uma opacidade cega. Impossível planejar aulas: falar sobre inconsciente é sempre como um encontro imprevisto, como o ver primeiro amor passando na esquina ou ser abordada por um assaltante: impossível prever como se vai reagir no momento e sempre se volta para casa com aquilo na cabeça, com uma sensação que poderia ter feito, ter dito, ter agido de maneira diferente.

“Todos possuem, em seu próprio inconsciente, um instrumento com que pode interpretar as manifestações do inconsciente das outras pessoas” Freud já dizia. Oras, quem melhor sabe transformar isso em uma arma de guerra como um psicanalista-educador? É por isso que, alunos, aviso, CUIDADO! Eles, os professores, são perigosos. Comparo-os até a uma edição atualizada das serias de Odisséia. Mas nossas sereias, as que ensinam, cantam em forma de prosa: sem métrica nem rima. Não é a teoria, mas é o nosso inconsciente que vaza pelas bordas da fala do professor, que seduz só pra nos afogar no mundo da linguagem. Em um trecho de Odisséia, Ulisses, consciente do fascínio da melodia das serias, acorrenta-se ao mastro, os marinheiros, fugindo ao perigo do canto, tapam os ouvidos: estes últimos sabem da sedução, mas preferem não se expor ao perigo. Os marinheiros ficam surdos. Ulisses, pasmo. Na sala de aula, nossa nau particular, vejo muitos Ulisses e muitos marinheiros.

Sejamos nós Ulisses, sejamos nós marinheiros, ninguém está imune à sedução da psicanálise. Mesmo sendo Ulisses, com nossas cordas frágeis, ou sendo os marinheiros, com nossa surdez (in)voluntária, a matéria nos põe diante de nosso próprio avesso. Vejo a sedução a Ulisses e aos marinheiros a olhos nus nas aulas, principalmente, as introdutórias. Até o presente momento, não encontrei uma aula sobre os Três Ensaios sobre a Sexualidade ou sobre as Interpretações dos Sonhos em que não depare com olhares perdidos, rostos pensativos, mãos levantadas com perguntas escorregando pelos lábios, compartilhamentos espontâneos de sonhos e de experiências infantis em plena sala de aula. Tirando por minhas próprias vivências, sei que, pelo pensamento de cada um, até pelos que repudiam a disciplina, passa ao menos uma vez os seguintes pensamentos: “há! Então é por isso que eu sou assim”. “Só se for com ela (a professora), isso nunca aconteceu comigo! Que nojo!”. Mas no outro dia vejo gente nos corredores com aquela cara de quem tem a interpretação exata para as besteiras, os atos falhos, que nos flagramos fazendo sem querer! Ou com pequenos risos devido a um sonho louco e que parece ter acabado de ter sido devidamente interpretado sob a luz da nova teoria.

Falo disso com uma gostosa nostalgia, uma sensação boa como reler um diário antigo. Ver alunos aprendendo psicanálise é como deparar com um espelho mostrando o que eu fui e a angústias que já tive (hoje devidamente atualizadas). Acredito que negar, resistir, ter dores de cabeça, tentar interpretar os próprios sonhos, tentar se analisar e até elaborar pequenas teorias acerca de si e dos outros é uma etapa necessária e nunca devidamente superada para um aprendizado apaixonado, para a familiaridade com o novo. Para a novidade que explica quem somos, mas para onde vamos... nem Freud explica!