Pedaços do Outro

Pedaços de nós.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O café vienense...



Se treinarmos a nossa consciência, ela nos beija enquanto nos morde.

(Friedrich Nietzsche)

Na última semana o Rio de Janeiro foi alvo de uma das maiores ações das polícias de sua história. O resultado foi catastrófico, carros queimados, mortes gratuitas ( como se existissem as pagas ). Depois de muito hesitar, mas com grande empurrão da imprensa, Sérgio Cabral, que tinha como um dos slogans de campanha a diminuição da violência na cidade, teve sua fantasia narcísica de onipotência frustrada ao aceitar forças federais. O resultado foi igualmente catastrófico. A imprensa ganhou ibope. O governo perdeu popularidade, e a tropa de elite ganhou notoriedade. A população, como nunca, apoiando, contribuindo, vê, em cada esquina, um militar anônimo travestido de Capitão Nascimento. As pessoas morrendo, torcendo, comentando, apontando “queimem as bruxas!” “enforquem” “matem” “queimem” “enclausurem”, “castiguem, castiguem, castiguem”. E a polícia nem dorme tentando apagar o fogo e ver o que sobrou da mobília chamuscada. Os especialistas de segurança pública se levantam de seus escritórios e viram comentaristas de televisão assim como os ex-jogadores de futebol viram comentaristas de esportes, formando opiniões que são exaustivamente repetidas nas rodas de conversas dos intelectuais que apóiam a morte de traficantes enquanto fumam tranquilamente mais um cigarro de maconha. As assistentes sociais correm de um lado para o outro na defesa dos direitos humanos. Os advogados aproveitam para ganhar o seu quinhão para a ceia de natal com a família. Os delegados colocam as havaianas nas mãos e correm de um lado para o outro, como crianças que tocam a campainha e fogem assustados e excitados, ora se defendendo contra as acusações acerca da fragilidade do sistema penal, ora levando presidiários líderes do tráfico de um Estado para o outro, não sem antes se certificar, é claro, se os traficantes não estão esquecendo de levar seus respectivos celulares no bolso. Afinal, a tecnologia chegou para todos e o show não pode parar!

E enquanto tudo isso ocorre, enquanto as pessoas riem, choram, morrem os psicólogos assistem bestializados...

Ora, estava eu no domingo folheando uma Veja burguesamente alojada em uma cafeteria à espera do meu café vienense ou do meu namorado - o que chegasse primeiro -, quando me interessei pela reportagem de capa, nela havia entrevistas com criminosos assassinos dentre eles, por mérito próprio, o traficante. Lendo, eis que vi o que agora me parece óbvio: ora, é provável que a estrutura psíquica que demarca muitos dos homens cuja profissão envolve matar é perversa e nisso eu contextualizo o tráfico e outras categorias liberais fora-da-lei ( prefiro nem entrar no mérito de nossos “caveiras” do BOPE, porque esses são nossos “perversos bonzinhos”...).

Certo. Sabemos disso. E daí? O que sabemos nós, psicólogos, das tramas políticas? O que temos a ver com a polícia? No limbo da ignorância, lavamos as nossas mãos, nos eximimos de nossa profissão, de nosso conhecimento e sentamos nas arquibancadas da sociedade assistindo o “Rio pegar fogo pra comer traficante frito” ora incriminando um, ora defendendo outro, e isso se considerarmos os psicólogos que assistem aos jornais porque outros tantos estão tão ocupados se afogando nos mares dos artigos que afirmam com uma ponta de orgulho “é, eu ouvi falar... não tenho tempo nem gosto de assistir televisão ou ler jornal. A mídia manipula. Eu sou um homem muito ocupado”. Para vocês, doutores, faço das palavras do pequeno príncipe, minha paráfrase “Os senhores não são psicólogos, são cogumelos!”. E para aqueles tantos outros de minha futura classe profissional que pensam, que elucubram hipóteses, eu lhes pergunto “como podemos ver esse fenômeno social dentro de nossa campo?”

Como pensar é um bom começo, comecei eu a pensar com os meus botões, para que serve o código de leis sociais para um perverso? Todos nós podemos ter uma idéia. Oras, a mente de criminosos dessa categoria pode se equiparar, por exemplo, com Jack, o estripador, de Londres de 1988 ou, quem sabe, com o célebre personagem Haniball do filme “O Silêncio dos Inocentes”. Os alvos são diferentes, mas a estrutura é a mesma. Nossos matadores nacionais matam por queima de arquivo, por retaliação, por sobrevivência, por via das dúvidas, mas parecem se incomodar com isso tanto quanto os que matam sem exigir qualquer remuneração pecuniária... Afinal, fazer o mal é um mero acidente de percurso, não um ato recriminável.

E as leis jurídicas? Dentro de meu conhecimento como cidadã brasileira, sei que o sistema prisional deveria funcionar como um órgão de reabilitação ( entro aqui em outra problemática para quem quiser ser o primeiro psicólogo a ganhar o Nobel Paz: “reabilitação de perversos em três passos simples” ). O sistema prisional, contudo, não reabilita, apenas funciona como um órgão meramente punitivo, em uma relação igualmente infrutífera porque se nós, povo, nos sentimos vingados, eles perversos se sentem vingativos, em um mecanismo retroalimentativo infindo. Para o perverso a relação de culpa e castigo inexiste. Vigiar e punir, vigiar e punir, mais punir que vigiar... Sabemos nós do limite entre mal e o bem que se funde no fundo do baú de nosso psiquismo. Para o bem existir, o mal é necessário. A psicanálise nos indica que se um perverso mata e é pego, não sente remorso. A lógica não é “perdoai, pai, porque pequei”, a lógica é “me arrependo porque fui pego, da próxima vez, isso não vai mais acontecer”. De próxima vez em próxima vez, eles vão elaborando mecanismos mais eficientes de efetuar seus crimes. E a pergunta a fazer aos psicólogos é... o que fazer com nossos perversos com seus celulares dentro das cadeias comandando o exército do pobretariado, nossas crianças, nossos adolescentes, nosso povo se arriscando traficando, vendendo e fumando em troca de prestígio, proteção e um pouco de dinheiro?

Mais que isso... o que vamos fazer conosco, neuróticos, que defendemos o uso de drogas nas rodas universitárias, mais que isso, usamos drogamos, fazemos passeatas para a regulamentação da profissão de traficante ops... pela legalização da maconha? E quando o circo pega fogo culpamos a polícia e o governo, que escolhemos nas urnas? O que fazer conosco que pagamos pegas armas que nos matam? Que armamos o palco do circo da política, das desigualdades sociais, da guerra civil que nos devora ao mesmo tempo em que nos beija? Dia após dia, usamos a miséria para sustentar nossas discussões cults que alimenta a nossa vida burguesa de ler Veja enquanto esperamos confortavelmente alojados em uma poltrona por um café vienense.

sábado, 1 de maio de 2010

Ulisses e o canto das sereias


Ensinar é sempre uma tentativa de aliciar, de seduzir. Ensinar psicanálise é quase um estupro. Falo isso pela aluna que sou, pelos abusos psicanalíticos que sofri e pelo processo de identificação com o agressor pelo qual passei, ou melhor, pelo qual passo pelo terceiro ano seguido. No primeiro ano passei com dores de cabeça literais (palavra que, praticamente, inexiste nas teorias psicológicas). No segundo ano, como monitora, acompanhei as dores de cabeça do outros alunos e fui testemunha, ou melhor, cúmplice, das constantes tentativas de aliciamento e sedução. Ensinar psicanálise é um tanto, assim, peculiar: se não as aulas tendem a se tornar um grupo terapêutico, um verdadeiro compartilhamento de dores psíquicas comunitárias.

Acredito que pela voz do professor sai um fluxo constante de significantes enigmáticos que se traduz aos alunos com uma opacidade cega. Impossível planejar aulas: falar sobre inconsciente é sempre como um encontro imprevisto, como o ver primeiro amor passando na esquina ou ser abordada por um assaltante: impossível prever como se vai reagir no momento e sempre se volta para casa com aquilo na cabeça, com uma sensação que poderia ter feito, ter dito, ter agido de maneira diferente.

“Todos possuem, em seu próprio inconsciente, um instrumento com que pode interpretar as manifestações do inconsciente das outras pessoas” Freud já dizia. Oras, quem melhor sabe transformar isso em uma arma de guerra como um psicanalista-educador? É por isso que, alunos, aviso, CUIDADO! Eles, os professores, são perigosos. Comparo-os até a uma edição atualizada das serias de Odisséia. Mas nossas sereias, as que ensinam, cantam em forma de prosa: sem métrica nem rima. Não é a teoria, mas é o nosso inconsciente que vaza pelas bordas da fala do professor, que seduz só pra nos afogar no mundo da linguagem. Em um trecho de Odisséia, Ulisses, consciente do fascínio da melodia das serias, acorrenta-se ao mastro, os marinheiros, fugindo ao perigo do canto, tapam os ouvidos: estes últimos sabem da sedução, mas preferem não se expor ao perigo. Os marinheiros ficam surdos. Ulisses, pasmo. Na sala de aula, nossa nau particular, vejo muitos Ulisses e muitos marinheiros.

Sejamos nós Ulisses, sejamos nós marinheiros, ninguém está imune à sedução da psicanálise. Mesmo sendo Ulisses, com nossas cordas frágeis, ou sendo os marinheiros, com nossa surdez (in)voluntária, a matéria nos põe diante de nosso próprio avesso. Vejo a sedução a Ulisses e aos marinheiros a olhos nus nas aulas, principalmente, as introdutórias. Até o presente momento, não encontrei uma aula sobre os Três Ensaios sobre a Sexualidade ou sobre as Interpretações dos Sonhos em que não depare com olhares perdidos, rostos pensativos, mãos levantadas com perguntas escorregando pelos lábios, compartilhamentos espontâneos de sonhos e de experiências infantis em plena sala de aula. Tirando por minhas próprias vivências, sei que, pelo pensamento de cada um, até pelos que repudiam a disciplina, passa ao menos uma vez os seguintes pensamentos: “há! Então é por isso que eu sou assim”. “Só se for com ela (a professora), isso nunca aconteceu comigo! Que nojo!”. Mas no outro dia vejo gente nos corredores com aquela cara de quem tem a interpretação exata para as besteiras, os atos falhos, que nos flagramos fazendo sem querer! Ou com pequenos risos devido a um sonho louco e que parece ter acabado de ter sido devidamente interpretado sob a luz da nova teoria.

Falo disso com uma gostosa nostalgia, uma sensação boa como reler um diário antigo. Ver alunos aprendendo psicanálise é como deparar com um espelho mostrando o que eu fui e a angústias que já tive (hoje devidamente atualizadas). Acredito que negar, resistir, ter dores de cabeça, tentar interpretar os próprios sonhos, tentar se analisar e até elaborar pequenas teorias acerca de si e dos outros é uma etapa necessária e nunca devidamente superada para um aprendizado apaixonado, para a familiaridade com o novo. Para a novidade que explica quem somos, mas para onde vamos... nem Freud explica!

quinta-feira, 29 de abril de 2010



"Seduziste-me, Senhor; e me deixei seduzir! Dirás então ao povo: Oráculo do Senhor: Eis que vos coloco na encruzilhada dos caminhos da vida e da morte."
JEREMIAS 20,7; 21,8





Começo com essa frase bíblica, o que por si só traz para mim cem anos de pecados e azar de mil espelhos quebrados, pois esta Mulher que homenageio aqui já nasceu com as marcas indeléveis da sexualidade, do prazer, da perversão e do sadismo. Uma mulher, de corpo tão pecaminoso (e irresistivelmente sedutor) já nasceu automaticamente excomungadada seja da ciência, seja da religião. Mas não é culpa dela, afinal, a psicanálise, não tem Deus no coração porque não tem coração para colocar Deus.
A psicanálise não se adéqua, já nasceu como uma peça sem encaixe feia, suja e só. Aliás, só não! Afinal, a Psicanálise foi ninada por muitas mães, a filosofia, as artes, a literatura, e é feita por pedaços de todas elas, como um monstro. Frankstein, ameaçado pelo grande pai, a neurologia, esta foracluída já em um Édipo precoce à moda Klein.
A psicanálise não se identifica com o pai, se identifica com a mãe, é castrada, é faltosa, pertence aos melindres do feminino. Sedutora, forte, perigosa, nossa mulher balzaquiana, contudo não é um humano, é um monstro feito de pedaços da mãe. A psicanálise, assim, não pode ter uma estrutura psicótica, ao contrário, parece ser uma neurótica, pois muitas vezes a flagro perguntando sobre aquele quem somos e aquela quem é. Outras vezes, deparo com uma psicanálise perversa que brinca com o nosso desejo de saber quem somos e saber do Outro, desse grande Outro, responsável pelos grandes dramas humanos. Afinal, o que quer a psicanálise? Quer nos dividir? Quer nos responder? A psicanálise explica? Explica o quê?
A Psicanálise não teve Édipo nem "é" Édipo. O Édipo somos nós. A psicanálise é Esfinge, que pergunta: Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?
Talvez o nosso Édipo tenha respondido, mas nunca vencemos a Esfinge, esta Esfinge que se fingiu vencer para, mais na frente, fornecer-nos enigmas indecifráveis. Indecifráveis para nós, alunos, estudantes de psicanálise, investigadores da Esfinge. Nós, que não nos damos por satisfeitos apenas em dar um nome ao bicho, não, essa pergunta já foi há muito respondida no começo de nossa caminhada enquanto humanos. A Esfinge agora nos lança um novo enigma, agora, quer que respondamos sobre a criança que carregamos conosco e que tem quatro pernas mesmo quando temos apenas três. Essa criança, a nossa grande falta interior.
Se a esfinge pergunta a todo minuto pela criança, nós perguntamos pelo Desejo, sempre pelo desejo de outra coisa, perguntamos sobre a falta, falta de quê? Aí depende. Falta-me, agora, respostas. A Falta, grande buraco feito no meio do Tudo e do qual nossa existência é sua medida exata.
Que considerações fazer sobre tantos buracos? Terríveis no asfalto, imprescindíveis a nossa existência!