Pedaços do Outro

Pedaços de nós.

quinta-feira, 29 de abril de 2010



"Seduziste-me, Senhor; e me deixei seduzir! Dirás então ao povo: Oráculo do Senhor: Eis que vos coloco na encruzilhada dos caminhos da vida e da morte."
JEREMIAS 20,7; 21,8





Começo com essa frase bíblica, o que por si só traz para mim cem anos de pecados e azar de mil espelhos quebrados, pois esta Mulher que homenageio aqui já nasceu com as marcas indeléveis da sexualidade, do prazer, da perversão e do sadismo. Uma mulher, de corpo tão pecaminoso (e irresistivelmente sedutor) já nasceu automaticamente excomungadada seja da ciência, seja da religião. Mas não é culpa dela, afinal, a psicanálise, não tem Deus no coração porque não tem coração para colocar Deus.
A psicanálise não se adéqua, já nasceu como uma peça sem encaixe feia, suja e só. Aliás, só não! Afinal, a Psicanálise foi ninada por muitas mães, a filosofia, as artes, a literatura, e é feita por pedaços de todas elas, como um monstro. Frankstein, ameaçado pelo grande pai, a neurologia, esta foracluída já em um Édipo precoce à moda Klein.
A psicanálise não se identifica com o pai, se identifica com a mãe, é castrada, é faltosa, pertence aos melindres do feminino. Sedutora, forte, perigosa, nossa mulher balzaquiana, contudo não é um humano, é um monstro feito de pedaços da mãe. A psicanálise, assim, não pode ter uma estrutura psicótica, ao contrário, parece ser uma neurótica, pois muitas vezes a flagro perguntando sobre aquele quem somos e aquela quem é. Outras vezes, deparo com uma psicanálise perversa que brinca com o nosso desejo de saber quem somos e saber do Outro, desse grande Outro, responsável pelos grandes dramas humanos. Afinal, o que quer a psicanálise? Quer nos dividir? Quer nos responder? A psicanálise explica? Explica o quê?
A Psicanálise não teve Édipo nem "é" Édipo. O Édipo somos nós. A psicanálise é Esfinge, que pergunta: Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?
Talvez o nosso Édipo tenha respondido, mas nunca vencemos a Esfinge, esta Esfinge que se fingiu vencer para, mais na frente, fornecer-nos enigmas indecifráveis. Indecifráveis para nós, alunos, estudantes de psicanálise, investigadores da Esfinge. Nós, que não nos damos por satisfeitos apenas em dar um nome ao bicho, não, essa pergunta já foi há muito respondida no começo de nossa caminhada enquanto humanos. A Esfinge agora nos lança um novo enigma, agora, quer que respondamos sobre a criança que carregamos conosco e que tem quatro pernas mesmo quando temos apenas três. Essa criança, a nossa grande falta interior.
Se a esfinge pergunta a todo minuto pela criança, nós perguntamos pelo Desejo, sempre pelo desejo de outra coisa, perguntamos sobre a falta, falta de quê? Aí depende. Falta-me, agora, respostas. A Falta, grande buraco feito no meio do Tudo e do qual nossa existência é sua medida exata.
Que considerações fazer sobre tantos buracos? Terríveis no asfalto, imprescindíveis a nossa existência!